O segredo de Brasília
I
- Vamos embora. - Marina concluiu, virando-se na cadeira para poder se levantar.
- Mas ainda nem terminei meu suco… - observou Luciano, que só tinha bebido metade do conteúdo de seu copo.
Estavam em uma lanchonete na avenida próxima ao apartamento onde ela morava. Cada um havia pedido um suco e, para dividirem, escolheram uma porção de batata frita. A garota bebeu seu suco na primeira meia hora de conversa e mal tocou nas batatas. Muito gordurosas para ela, que era sempre tão comedida com sua alimentação. Já o rapaz, devorou o restante da porção enquanto bebia pequenos goles e falava, falava muito. E a menina só escutou, até o momento em que ele terminou de contar e ela decidiu ir ao caixa.
- Desculpe. É que você falou tanto, que achei que já tinha terminado de beber…
- Tá, já entendi, você não estava gostando da história. Era só falar!
- Não é bem assim. Mas é que…
- Agora, não adianta disfarçar! Estou aqui, abrindo meu coração para você há duas horas e você não acreditou em uma palavra do que eu disse.
- Mas tudo parece tão maluco, tão impossível… - pontuou ela, desviando o olhar e deixando-o perdido entre os carros que passavam na avenida.
- Eu sei… No começo, eu também não queria acreditar. Achei que era um boato de bastidores. Até que vi com meus próprios olhos!
- Você viu a coisa? - Marina perguntou, fazendo cara de nojo.
- Só de passagem, por um vão de porta.
- Isso muda tudo. Se você viu, eu acredito!
Luciano olhou para ela, com os olhos úmidos, segurando a lágrima que queria se formar. Era muito importante para ele que Marina acreditasse. Ela era sua melhor amiga. Aliviado, tomou o restante do seu suco e levantou-se para ir pagar a conta.
- Deixa que eu pago, você falou que estava sem dinheiro. - lembrou Marina.
- Obrigado. Quando eu arranjar outro emprego, eu pago nossos próximos lanches.
Conta paga, foram andando vagarosamente pela avenida em direção ao apartamento de Marina. Era quatro da tarde e havia muitos carros e ônibus passando por ali. Sorte que era domingo, assim sua amiga estava livre para conversar.
- Sabe de uma coisa… - começou Marina, enquanto pisava em um galho de árvore que estalou sob seu tênis.
- Que foi?
- Quero que você me conte a história novamente.
- Por quê?
- Agora que eu acredito, quero saber os mínimos detalhes, quero escutar tudo o que você descobriu. Mas não acho que isso seja assunto para se falar em público. Vamos pra minha casa.
Luciano sorriu, meneando a cabeça positivamente. Ele mesmo ainda não tinha assimilado todos os últimos acontecimentos e, falar deles, parecia ser algo bom. Talvez fosse mais fácil até para ele aceitar a si mesmo.
II
O apartamento de Marina era bem simples. Um dormitório, uma cozinha-área-de-serviço e banheiro. A porta ficava de frente para a geladeira. Depois era a pia, o fogão, meia parede e, atrás dela, um tanque. Na parede oposta, ficava uma bancada comprida que acompanhava o cômodo e quatro banquinhos. A bancada era interrompida pela passagem que ia ao quarto e ao banheiro. Marina pendurou sua bolsa num gancho atrás da porta e foi lavar as mãos:
- Ainda está com fome? Vou preparar um lanche para mim. Quer um também?
- Até quero. As batatas estavam boas mas não deu nem pro começo… - sorriu Luciano, corando sem graça.
- Mas vou logo avisando que aqui não tem nada das porcariadas que você costuma comer!
- Qualquer coisa serve. O que você tem?
- Pão integral, alface, tomate, cenoura ralada, queijo branco e suco de caju. - respondeu Marina, enquanto reunia os ingredientes em cima da bancada e pegava os pratos e copos.
- Faz para mim um igual ao seu.
- Enquanto eu faço, explica melhor o que você foi fazer em Brasília.
- Me ofereceram um estágio. Sabe como é, quando a gente distribui os currículos nunca sabe quem vai chamar. - concluiu Luciano.
- É verdade. Acho que foi azar…
- Mas na época, a oferta era boa. Um estágio de 6 horas por R$800,00 não se encontra todos os dias. - justificou-se Luciano.
- Mas você nunca ouviu o ditado que diz que quando a esmola é demais o santo desconfia? - questionou Marina, terminando os lanches e sentando-se para comer.
- Como se eu ligasse pra ditado popular… - falou Luciano com desdém.
- Pois deveria. Agora, não estaria nessa enrascada! - concluiu Marina. Deu uma mordida grande em seu sanduíche e ficou quieta, mastigando seu bocado. A alface estava bem fresca, estalando apetitosamente ao ser mordida. Luciano também mordeu seu pão e ficou imaginando o que Marina tinha contra hamburger, cheddar e muita maionese. Refrigerante, então, devia ser algo impossível naquela casa. Quando já estavam na metade, Luciano voltou a falar:
- No começo, as coisas eram normais. Gabinete de deputado tem muitos auxiliares e eu era apenas mais um. Até que, uma noite, o Joca me ligou.
- Não me lembro de você ter falado dele… - observou Marina, que sempre foi muito detalhista.
- O nome dele era Joaquim. Também era estagiário. Havíamos saído algumas vezes para beber depois do trabalho e trocamos número de celular. Ele disse que qualquer dia desses ia me apresentar uma amiga. Pena que não deu tempo, coitado. - comentou Luciano, com pesar em seu olhar.
- O que ele queria?
- Nunca soube completamente, apenas desconfio. Acho que ele queria me alertar. Ele estava muito nervoso, falando frases sem sentido. Pelo menos, era assim que se pareceram naquela época.
- Hoje, você o ouviria de outra maneira…
- Pois é, ele falou algo mais ou menos assim: “Não volte mais lá!”, “Fuja daquilo!” “Vou tentar resistir, mas não sei por quanto tempo…”, “AAAAAAi, minha cabeça!”, “Acho que vou enlouquecer!”, “Eles vão me dominar, já está acontecendo…” e a ligação foi terminada. Depois disso, ele nunca mais apareceu para trabalhar. Disseram que ele pediu para ser mandado embora, que tinha arranjado algo melhor.
- Se você imaginasse o que era, nunca mais teria voltado a trabalhar naquele lugar… - respondeu Marina, num tom de voz pensativo.
- Pois é. Como eu ainda não sabia de nada, voltei. E só comecei a estranhar as coisas quando percebi que o Carlos ficou diferente. Antes, ele trabalhava dizendo que queria juntar uma grana. Falava que ia sair de lá em um ano ou dois. Dizia que não aguentava a idéia de trabalhar para político. O asco dele era tamanho, que ele disfarçava na hora de trabalhar, mas, fora de lá, fazia a maior cara de nojo. Certo dia, chegou para trabalhar falando que queria começar carreira política. Disse que estava mexendo os pausinhos, que o deputado se interessou pela candidatura dele para vereador e que iria apoiá-lo nas próximas eleições. Se afastou dos colegas, vivia atrás do deputado e falava de política com um brilho no olhar e um tom de orgulho na voz. Irreconhecível!
- Será que foi a convivência? - questionou Marina, imaginando os meses de lavagem cerebral que o ambiente de trabalho poderiam ter proporcionado ao rapaz.
- Não. Foi do dia para a noite. Dormiu odiando político e acordou apaixonado pela carreira.
- Nossa!
- Poucas semanas depois, vi algo parecido com o Pedro. Ele só não odiava política. Mas um dia, sem mais nem menos, também apareceu no trabalho dizendo que queria voltar à sua cidade Natal e que iria se candidatar a vereador. Aquilo passou a me deixar intrigado. Conversando com estagiários de outros gabinetes, concluí que o mesmo se passava em mais lugares. Era tudo muito suspeito. Até que, um dia, o secretário do deputado me chamou para jantar na casa dele. Disse que era a respeito de uma promoção. Na hora imaginei o pior. Comecei a falar que ele poderia explicar ali mesmo, que eu nem pretendia ficar ali muito tempo para ser promovido, enfim, tentei evitar o cara de qualquer jeito. Não adiantou. Ele disse que eu poderia pensar melhor, que eu poderia responder depois de uns dias, pois ele não estava com pressa.
- Você não perguntou porque foi escolhido? - interrompeu Marina.
- Ele respondeu que eu tinha potencial. Disse que eu queria ganhar dinheiro e que ele tinha como me ajudar a ganhar mais e mais rápido. E foi-se embora da sala. Quando eu estava saindo, passei em frente à porta desse secretário, que estava entreaberta. Ele estava de costas, segurando uma espécie de aquário sem água com algo dentro. Talvez uma lesma. Era preta e estava grudada no vidro. Ele andou em direção ao fundo da sala e saiu do meu campo de visão. Confesso que fui embora com aquilo na cabeça.
- Você saiu de lá e foi direto para casa? - quis saber Marina, que estava ansiosa e apertava uma mão contra a outra constantemente.
- Não. E esse foi meu erro. Sentei em um barzinho e fiquei pensando nos acontecimentos. Acho que fiquei bebendo em torno de uma hora e depois fui para casa. Chegando lá, estava com o corpo mole e entrei pensando em dormir. Poucos minutos depois que entrei em casa, a campainha tocou. Era um entregador de pizza. Abri a porta e reclamei que não tinha pedido pizza nenhuma, que não ia pagar, que eu estava a fim de dormir e que não tinha nada com aquilo. O cara falou que era baratinho, que estava na promoção, que era R$10,00 e que o endereço era o meu. Então, ele me mostrou o papel. Era mesmo o meu endereço. Entrei xingando para buscar a carteira. Foi então que tudo aconteceu. O entregador de pizza me derrubou no chão e prendeu meus braços nas costas. Eu estava tão mole, pela bebida e pelo cansaço, que, por mais que eu tentasse, não consegui reunir forças para lutar. Então, ouvi passos no corredor. Alguém entrou, acendeu a luz e fechou a porta.
III
Luciano parou um momento, como que organizando as idéias. Bebeu mais suco e recomeçou a narrativa.
- Acho que a cena que se sucedeu foi mais ou menos essa:
- Peguei o cara certo? - voz do entregador.
- Pegou. - e a voz era do secretário do deputado. Fiquei mais assustado do que já estava.
- Me passa a arma, assim eu cuido dele melhor. - pediu o entregador.
- Vire-se devagar. - ordenou o secretário.
Virei bem devagarinho.
- Isso, muito bem. Agora, nem tente reagir. Se fizer alguma gracinha, leva tiro.
Agora que eu podia vê-lo, observei que o secretário estava com o mesmo terno de quando eu o vira no gabinete, carregando o que parecia ser aquele aquário sem água, só que coberto por um pano.
- Sente-se naquela cadeira ali. Isso, muito bem. Agora, ponha seus braços para trás do espaldar da cadeira. Isso, assim… - disse o secretário enquanto colocava o que trazia sobre a mesa, tirava um par de algemas do bolso do paletó e me algemava.
Depois de me algemar, ele puxou o pano e lá estava a estranha lesma preta em seu vidro, só que desta vez ela estava numa posição mais curva. Naquele momento em que o aquário estava ao meu lado, pude olhar mais de perto e ver que a lesma não se parecia com as lesmas comuns. Tinha uma cabeça comprida e fina, avermelhada, que só pude concluir tratar-se da cabeça porque o outro lado era mais fino e preto como o restante do corpo. Era gosmenta, e deixava atrás de si um rastro esverdeado de brilho fraco, como se tivesse um pouco de brilho da Lua nele. E, ao contrário das lesmas, mostrou-se bem rápida quando foi ser pega, espalhando sua gosma verde luminescente pelas paredes e fundo do aquário vazio. Estava pensando que aquilo também não era um terrário, pois não havia terra em seu interior, quando a lesma preta pinçada foi esticada pelo secretário na minha direção.
- Você devia ser grato. Terá uma vida promissora de agora em diante. Voltará para Campinas, onde se canditará a vereador. Depois, prefeito. Quem sabe, um dia, governador? Ou deputado? Senador? Quem sabe? - e aproximou o verme do meu rosto, que tentei afastar ao máximo.
- Eu não quero nada disso! Você vai ver, vou denunciar você e os seus ajudantes!
- Há, há, há, há! Você não quer agora, mas vai querer. Vai gostar desses cargos. Vai querer cada vez mais dinheiro e mais poder. E, em breve, não vai se lembrar de mais nada do que está acontecendo agora.
Marina estava muito nervosa. Sua boca estava seca, tamanha era sua tensão. Serviu-se de mais suco e ofereceu ao amigo, que recusou e continuou a narrativa:
- Algemado e sob a mira de uma arma, não tive muitas alternativas. O secretário esticou a pinça até depositar aquela coisa preta pegajosa na minha bochecha, que rapidamente se deslizou pelo meu nariz adentro e subiu para o meu cérebro. Foi horrível! Doeu, fedeu, foi nojento, ardeu, me deu tontura, minha cabeça começou a latejar e, quando eu já estava quase pra vomitar, desmaiei. Acordei na minha cama, com a roupa do trabalho. A porta da rua estava fechada, porém destrancada. Minha chave ainda estava no meu bolso. Corri para um espelho, em busca de algum sinal da criatura nojenta, mas não havia nenhum. Então, fui ao aeroporto, comprei uma passagem para São Paulo, chegando lá peguei um ônibus para Campinas e vim te procurar. Eu não quero ser prefeito desta cidade. Eu não quero ter nada com a política. Por favor, Marina, você precisa me ajudar! Preciso me livrar desse verme!
- Ajudo, Luciano, com certeza eu ajudo. Antes, eu não tinha estendido direito, você tinha me contato que achava umas coisas, deu algumas explicações vagas, tudo muito sem sentido e sem provas.
- Eu tinha medo de contar tudo. Medo da sua reação… - justificou-se Luciano, dando a impressão que começaria a chorar a qualquer momento.
- Agora que você explicou tudo, não só acredito como já tive uma idéia para lhe ajudar. Naquela avenida onde estávamos lanchando hoje tem uma clínica de imagens e diagnóstico. É só alguns quarteirões depois. Poderíamos ir lá amanhã e fazer alguns exames.
- Com que dinheiro?
- Eu tenho algumas economias. - ofereceu Marina.
- Mas não precisa de um médico para fazer o pedido do exame?
- Conheço um clínico geral que cobra R$40,00 a consulta. Garanto que se eu falar que você anda tendo dores de cabeça e quer investigar a causa, ele preenche os pedidos.
- Puxa, Marina, nem sei como te agradecer! - respondeu Luciano comovido, abraçando a amiga.
O abraço foi longo, acompanhado de um choro que era um misto de angústia com alívio. O choro foi cedendo, o abraço foi se desfazendo, até que Luciano secou os olhos com as costas das mãos e sorriu. Então, Marina sugeriu:
- E agora, vamos dormir?
- Vamos! Não preguei o olho desde que saí de Brasília. - explicou Luciano, cujo rosto demonstrava um grande esgotamento.
- Se você não se importar, tenho um colchão onde uma amiga costuma dormir quando vem aqui em casa. É fininho, mas é melhor do que nada.
- Cansado como estou, dormiria até de pé!
IV
No dia seguinte, Marina levantou-se e foi ligar para o seu trabalho. Disse que iria faltar por motivo de doença. Estava preparando o café da manhã, quando Luciano acordou.
- Bom dia! Comprei pão francês para você, pois sei que você adora. - mostrou Marina, enquanto terminava de rechear o pão.
- Obrigado! Já disse que você é um amor?
- Imagine, o que é isso. Amigos são para essas coisas… - respondeu Marina, corando, indo pegar leite na geladeira.
Luciano começou a cantarolar a Nona Sinfonia de Beethoven animadamente.
- Ora, ora, como acordamos de bom humor! Posso saber o motivo de tanta alegria? - perguntou Marina, indo até a bancada para colocar o leite nos copos.
Luciano aproximou-se de Marina, ficando entre ela e a porta da rua.
- Marina, minha cabeça está cheia de planos! São tantas idéias ao mesmo tempo, que não vejo a hora de começar! Espere para ver: minha carreira política será um sucesso!
Marina deu um passo para trás, boquiaberta. A mão trêmula derrubou leite fora do copo, que escorreu na bancada.
- Quer ser minha assessora? - propôs Luciano, estendendo a mão.
E, quando Marina olhou para a mão estendida, estremeceu ao ver uma pequena, mas inconfundível lesma preta em seu dorso.
Um comentário:
wow!!! que trama! que meeeedo!!!
adorei sua história! vc poderia até publicar.
e dar uma continuidade, que tal?
bjz e bom fdz!!!
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